terça-feira, 21 de abril de 2009

Despedida

"Longe das planícies ergueu-se uma árvore curva mas firme. As estrelas abandonaram a noite, recusando-se a banhar a crueza dos homens e a luxúria dos amantes"


O mundo cobre-se de cinza, agora que o teu semblante abandona as frestas da casa pequena.
Delicadamente, escondo os móveis com lençóis ainda perfumados de ti.
Absorvo as memórias e apago as velas. Logo já não irás voltar, o corpo cansado
e doente. Nada mais existe neste espaço que foi teu. A lua fita-me, interroga-me a cada
segundo se tenho força para fechar finalmente a porta da cabana.
Sei que hoje, amor, é noite de viagem. Outro dia voltarei, com novas histórias e erros
para pintar as paredes e caiar os espelhos. Sim, outro dia.
Por ora, só o bafio e o silêncio poderão habitar as tuas fotografias.
Quando regressar, irei religiosamente guardá-las numa caixa de madeira escura
e deitá-la no lago. Aguardarei os dolorosos momentos em que a água
irá lamber o teu rosto, irá denegrir os teus traços e delapidar o pouco
que resta ainda dos teus cabelos no meu regaço.
Mas hoje, amor, é noite de viagem. Fecho a porta devagar para não perturbar
as linhas do passado que jazem entrelaçadas nas linhas vagas dos futuros possíveis
e impossíveis. O frio engole-me os ossos. O mundo espera-me. O vento encarregou-se
de espalhar por cada canto da terra que partiste finalmente.
Ou terei sido eu, amor? Cansada já dos teus regressos infindáveis. Das tuas
mãos secas e envelhecidas onde outrora havia liláses e orquídeas
a brotarem dos teus dedos.
Abandono a casa e o quarto, o caminho batido e a árvore, o lago e as ninfas.
Abandono-me aqui, o meu eu-menina, inocentemente adormecido
e apartado do cair da noite. Quando regressar, sei que irei beijar-lhe os cabelos
e murmurar-lhe ao ouvido que ainda não é tempo de acordar.
Se um dia esse tempo virá, não sei. Nem importa. Nada importa, neste momento
em que os pés se arrastam. Afasto-me. Passo os dedos imperceptivelmente
pelas pedras, pelas flores, pelos ramos dos arbustos. Para que ao regressar,
o lago e a cabana saibam que são meus e que sou deles e que o caminho me trouxe
de volta. Para que as tatuagens fiquem impressas na sua matriz.
Ouço ainda o teu riso, as tuas lágrimas, as feridas por cicatrizar. Ouço-te.
Ou será um sonho desperto? Não olho para trás, não quero encarar as verdades
que se debruçam sobre a minha cama. Lambo os lábios devagar. Para sentir
pela última vez o teu sabor. Cubro o rosto e obrigo-me a continuar.
Amanhã, sei que nada mais restará senão uma lembrança vaga
do teu rosto e dos dias que recebi o teu coração.

1 comentários:

fs2 disse...

"O anjo da noite desceu sobre ti, agora é tarde para te explicar o sol." - V. Ferreira

Espero sinceramente que não regresses dessa tua viagem. Há sítios dos quais devemos partir para não mais voltar.

 

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