Espreito o violeta através da vidraça da janela da cabana perdida no bosque que é a minha psique.
Sei-me tão perdida hoje como sempre. Nada em mim jamais foi firmeza ou adequação. Apaixonei-me sempre pelos homens errados, pelas pessoas mais improváveis. Prendi casacos em cada degrau da escada que subo quando regresso ao quarto escuro. Ainda sei o cheiro da pele que se impregnou no tecido.
Conheço os erros, os enganos, conheço-me.
Sei-me tão só hoje como sempre.
Ouço os teus passos secos e os teus lábios no meu pescoço. Os meus olhos estão cegos e as mãos fechadas. As esperanças e os motivos perderam-se na
infinitude do tempo e só restou o orgasmo e a antecipação do fim. Onde caminhaste todas as noites em que não curvaste o corpo na direcção do meu seio?
Não uso palavras. Não me uso. Não te uso. Não me movo. Sinto os teus lábios e as palavras mornas. Murmuras junto ao meu pescoço.
Lá fora, o gelo cobre o violeta. O tempo é sempre impaciente dentro da minha psique. Não existem regras para a violência da mente.
Deixo-me cair no chão, ajoelhada, vergada pela intempérie das emoções e do silêncio. Sinto as tuas mãos a percorrerem-me os ombros.
Obrigas-me a fitar-te. Não quero olhar os teus olhos e o vazio do azul. Não quero olhar-te e ver em ti todas as mulheres que desnudaste. Não quero ouvir as palavras com que me comoves a ausência.
Na parede jaz uma fotografia de ti menino. A inocência perdida que entregaste no meu regaço num jardim mudo de calor e vícios.
Violas-me o olhar, deixo cair o corpo no cansaço do chão. Aperto as mãos contra o seio e cuspo-te acusações, veneno que me corre nas veias. Hoje, como nunca, rasgo-te.
Não olho nem por um momento a fotografia que jaz na parede. Que sei que tem o olhar cravado nas minhas costelas. O olhar penetrante de um menino que partiu numa noite abafada de verdades. Sabes, às vezes quase sinto a sua mão pequenina nos meus dedos alvos. Às vezes, vislumbro-o nos teus olhos imensos de medo.
(e tu, que cresceste no espaço entre o meu coração e o meu ventre, temes-me. temes o caminho que te traz de volta ao quarto escuro, ao meu pescoço branco. temes o amanhã e os tijolos com que ergueste um muro para encerrar o mundo que é teu. eu sou ainda a tua recordação)
Tenho a voz quebrada e as pálpebras fechadas para não ver o que sempre pressenti. Não quero apaixonar-me pela amargura com que vestes os teus dias. Não quero trazer-te assim, tão dentro de mim. Finjo não ouvir a tua respiração. Finjo não sentir quando desces as mãos dos meus ombros até às minhas ancas.
Finjo não sentir quando mordes a minha pele. Finjo não sentir o sangue e a vida escorrerem de mim.
Concentro-me no silêncio e no medo. O medo que te impeliu a todas as viagens, a todas as fugas, a todos os dias que não me embalaste.
Vejo-te tão claramente. Vazio. A segurar mulheres penduradas no teu pescoço, a oferecerem-te os lábios e a falta de coragem. A facilidade com que lhes abres as pernas, com que lhes provas as inseguranças. Vejo-te. Vejo os teus olhos a focarem o meu rosto em todos os rostos, a transformarem pernas e braços na minha voz. Vejo as tuas mãos estremecerem enquanto procuras os meus gemidos, enquanto sonhas os meus lábios junto ao teu ouvido a exigir-te entrega ilimitada.Vejo a forma como levas o cigarro à boca, enquanto percorres os lábios com a língua para apagar o meu sabor. Vejo-te, o medo com que cobres o corpo que dorme a teu lado e, não, não é meu. Os dedos trémulos com que escreves memórias para esquecer a cadência do teu corpo no meu, a sensualidade doentia de te saberes meu.
Se estender os dedos, sei que estás a meu lado. Febril. Se estender os dedos, sei que me amarás com a fúria da negação. Se estender os dedos, sei que
partirás pela manhã na inevitabilidade do fim.
Se estender os dedos, se abrir os lábios e sentires o calor que antecede a morte o silêncio.
Se quebrar a quietude com que dormes, a serenidade que encontras no acto de te alimentar da minha alma.
Aguardo o findar da noite e da tua febre. Aguardo a manhã e a prostituição do teu sentir. Aguardo o Sol que irá cobrir a mancha lilás que deixas no chão, deitado a meu lado, perdido nos sonhos infantis que ainda te fazem menino nestas horas tardias. Aguardo que a fotografia se desbote com o passar do tempo.
Aguardo que te deixes seduzir pela fraqueza das mulheres e pela dureza plácida dos seus traços. Aguardo que me descubras e me murmures que guardarás a minha inocência perfumada no canto mais secreto e sagrado do teu âmago.
Aguardo o findar da noite.
E da tua febre.
No silêncio.
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1 comentários:
"Hoje aconteceu o que esperava. Nova derrota. É nestes momentos de maré baixa que eu me tento a acreditar que se é profundo apenas quando se mergulhs em nós próprios; que a vestidão e profundeza do mundo nada é em confronto com a que existe em cada um. Ou quererei eu apenas justificar-me da minha passividade?" - V. Ferreira
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