domingo, 9 de dezembro de 2012
Momento
Sentiu-lhe o cheiro antes sequer de lhe vislumbrar a silhueta esquiva.
Percorreu o espaço, o coração a ensurdecer-lhe os ouvidos.
Ouvia-o rufar, implacável, enquanto lhe adivinhava o cabelo macio e o sorriso difícil.
Encurtou o caminho em passadas largas, secas, onde não há espaço para dúvidas.
Viu-a. Sempre tão ela, tão imensa na sua honestidade incompleta.
Cerrou os punhos ao lado do corpo tenso, onde o sangue lhe trazia as memórias como punhais.
Ela sorria-lhe e cobria-o de ternura.
Adivinhava-lhe as impaciências, as inconstâncias.
Tomava-a pela cintura, tão frágil no seu abraço.
Tão fácil esmagar-lhe as linhas mágicas que lhe definiam os pulsos frágeis.
E ainda assim, protegia-a. A pequena que lhe trazia o perfume das cores.
Cobriu-lhe os dedos esguios com as suas garras, as suas mãos fortes.
Construiu caminhos, viu futuros, dias onde o Sol seria quente e a Lua, a sua noiva.
Ouviu-a, tantas noites a declamar os poemas que lhe nasciam dos lábios rubros.
Decorou-lhe as fronteiras, marcou-a.
Ela era dele.
Engoliu em seco, a garganta áspera, um rosnado que lhe nascia no peito e morria no silêncio mudo.
Tinha-a desenhado todas as noites em que a esquecia por entre o toque fantasmagórico de um relógio transparente.
Tinha-a imaginado, algures, vergada de erros e ausência.
Tinha dado todos os passos, como um viciado em recuperação.
E ainda assim, nada o tinha preparado para finalmente lhe sentir o cheiro doce.
Bebeu o perfume que era a pele dela, ainda tão longe, o formigueiro nos dedos de a tocar.
Finalmente render-se ao frémito de a segurar pela cintura e trazê-la ao seu peito.
Tinha-a deitada no seu peito, rendida.
Exausta de amor e rendição.
Percorria-lhe os cabelos com os dedos grossos, e transmutava-se milhares de vezes na presença dela.
Uma incógnica e ainda assim uma certeza.
Acariciava devagar a pele branca que queria tatuar com os dias em que ela seria apenas sua.
Com os dedos falou-lhe dos anos que fariam, das gargalhadas que lhe ouviria quando lhe mudasse os humores bruscos.
Planeou na sua pele os momentos infinitos em que lhe traria os astros para a ver sorrir.
Queria dizer-lhe algo, vê-la virar-se para si.
Queria ver-lhe o choque nos olhos.
Queria sentir que finalmente a tinha encurralado, que não poderia mais evitar-lhe os olhos vigilantes.
E no entanto, a sua presença era demasiado para os seus sentidos, para a privação com que os tinha controlado.
Ela era, afinal, a explosão de cores e cheiros, um orgasmo de vermelhos e púrpura.
Parecia-lhe tão inocente, tão exposta.
Queria despedaçá-la. Queria protegê-la. Queria dominá-la, encostá-la numa parede, onde tudo o que visse fosse a luxúria que lhe consumia a alma.
Agarrou-a e rodou-a no espaço.
Pegou-lhe nas mãos nas suas e aqueceu-as.
A sua pequenina. Tão etérea e tão real.
Transmutava-lhe o pêlo em pele. E a pele em chamas.
Queria entrar nela e ocupá-la, inteira.
Ainda não o tinha visto. Continuava a sorrir sorrisos que não lhe chegavam às íris.
Os olhos coroados de profundas olheiras que patentavam as noites em que os pesadelos a dilaceravam por dentro.
Viu-lhe a linha do pescoço que tantas vezes tinha saboreado com a ponta da língua.
Viu-lhe as veias que percorriam as mãos mais magras.
Mais ténues.
Queria sentir-se vitorioso. Queria não sentir nada.
Queria sobretudo não sentir o impulso selvagem de a resgatar do seu vazio.
Segurava-a firme pela anca.
Sua.
Uma pertença que ultrapassava qualquer laço terreno.
Reconhecia-lhe os pedaços.
Escondia pedaços de si nas curvas do corpo que albergava a sua alma.
Amava-a.
Indubitavelmente.
Finalmente, viu-o.
Os olhos semi cerraram-se no choque que lhe queria produzir.
E ainda assim, em algo mais.
Um pedido. Um convite mudo de salvação.
Viu-a dominar em momentos o sorriso que ameaçava escorrer-lhe dos lábios para o chão.
Sentiu o peito contrair-se em espasmos de mágoa.
Era tão fácil derrotá-la naquele preciso momento.
Rasgar as fotografias de uma fuga imprecisa.
Tinha planeado este momento ao pormenor nos dias em que se forçou a esquecer o nome que lhe queimava a língua.
Tinha-a no colo.
A cabeça reclinada no ombro, onde deitava uma vida que lhe cansava os ossos.
Contava-lhe de fadas e sonhos vívidos.
Sentia-lhe os dedos frios na sua pele.
Queria aquecê-la no fogo que lhe ardia na alma.
Murmurou-lhe ao ouvido: "Estou aqui e irei proteger-te. Não permitirei que nada ofusque o sorriso que te ilumina as pálpebras. Farei nascer o teu sorriso todas manhãs, irei guardá-lo todas as noites. Farei dele o meu Sol e as tuas mãos, a minha Lua. Irei amar-te, hoje e sempre."
As pernas movimentaram-se por um milagre que não conseguiu definir totalmente.
Roçou-lhe na manga, para lhe absorver o cheiro da pele.
Ouviu-a dizer qualquer coisa, não sabia precisar o quê.
Tinha uma tempestade na caixa toráxica e ela era o nome do furacão que lhe assolava as entranhas.
Ela deixou cair as mãos vazias e o meio-sorriso com que fingia os dias e as noites.
Fixou os olhos no chão, enquanto ele se afastava.
Ele tocava-lhe o corpo e alma.
Ela era a sua bandeja e o seu banquete.
Sorria-lhe. Um sorriso que lhe nascia do âmago.
Beijava-lhe os dedos, o rosto, os lábios.
Não existia ontem, nem hoje nem amanhã.
Apenas o momento.
Sorria-lhe, extasiada.
Viu-o a percorrer o caminho que o levava para longe.
E tudo o que tinha nas mãos era vazio e memórias que lhe feriam as noites.
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