Era ainda uma adolescente quando li As Brumas de Avalon da Marion Zimmer Bradley.
Foi uma das obras que revolucionou a minha vida.
Morgaine foi a primeira verdadeira personagem feminina literária que rompeu com todos os esterótipos, que cometeu erros mesmo sendo a protagonista, que viveu com ressentimentos, com mágoas, que fez escolhas que o tempo provou erradas quando pensou serem as certas.
O livro fala-nos de personagens que são verdadeiramente pessoas, porque são verdadeiramente complexas e multidimensionais. Que caminham por rumos que não têm a certeza onde vão levar. E que mesmo sabendo, teimosamente remam contra a força do destino e dos eventos. A vida não é sempre justa nem recompensa os bons e castiga os maus.
Morgaine é também uma personagem feminina com uma sexualidade presente, vivida sem repressões nem culpa.
Foi um ponto de partida para a exploração de caminhos mais pagãos, o meu mundo expandiu-se para se tornar no que é hoje.
É difícil explicar o poder transformador que a arte pode ter.
Foi com profunda repulsa que há anos descobri as acusações graves que Marion Zimmer Bradley e o marido foram acusados. Subitamente, a liberdade sexual de Morgaine era conspurcada pela verdadeira vida da sua autora, que nunca poderei nem aceitar nem reconciliar com o profundo impacto que o livro teve e ainda tem na minha vida.
Felizmente para mim, na altura, a internet era ainda uma semente do vasto mundo de informação que é hoje e, talvez inconscientemente, eu nunca procurei saber aprofundadamente a vida da autora, poupando-me desse modo à crise existencial que atravessei quando li algo sobre o assunto e acabei por destapar um ninho de podridão. Soubesse eu esta informação à partida e a minha relação com a arte que a Marion escreveu teria certamente sido condicionada pela imagem da autora.
Eu atravessei este deserto com a Marion do mesmo modo que muitos outros hoje atravessam com JK Rowling.
Eu li os livros de Harry Potter e gosto bastante dos filmes, mas não teve um papel modelador da minha identidade, como teve para muitos outros, sobretudo minorias que se reviam no menino que cresceu à margem e ostracizado para depois descobrir amigos, família, um mundo de pertença e aceitação.
Marion jaz algures enquanto JK Rowling continua a encetar uma guerra transfóbica e a alienar muitos dos que leram e amaram as suas obras e praticamente impossibilitando que apreciem obras vindouras.
Após reflectir sobre ambas e sobre a linha ténue de conhecermos os nossos ídolos e com isso destruir a sua imagem e transbordar para a nossa ligação com a arte produzida, concluo que Marion ensinou-me uma última e importante lição. Que até quem mais idolatramos poderá um dia falhar e estilhaçar a imagem, tornar a relação entre a arte e o artista numa dissonância cognitiva nem sempre fácil de gerir e que sermos adultos é também destruirmos os nossos ídolos e aprendermos a viver com as suas diversas facetas, boas e más e retirar deles o que nos nutre, sabendo ainda assim separar a pessoa da obra, num exercício ingrato e nem sempre fácil mas ainda assim profundamente humano.
sábado, 31 de dezembro de 2022
Os ídolos
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