sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Caminhos vedados

 
Eu gosto de crianças mas não gosto assim tanto de crianças. Gosto muito das minhas crianças.
Sim, gosto de crianças no geral, mas não a um ponto que me fizesse querer trabalhar como professora ou educadora, por exemplo.

Mesmo ter as crianças a dormir cá em casa é coisa que evito, porque há um peso de responsabilidade que prefiro não assumir, quando são um pedaço minhas mas não totalmente.
Ter um envolvimento (ainda) mais a fundo na vida das crianças implicaria assumir, até certo ponto, uma figura de autoridade e educação que eu não quero ter. Já tive essa experiência quando me vi a assumir parcialmente um papel parental e não é coisa que queira repetir. Quando a criança não é verdadeiramente nossa, há uma linha muito ténue entre o que podemos e o que devemos fazer/dizer.

Contrariamente à fs2, a minha infância e sobretudo a minha adolescência foram longe de idílicas e eu sei que uma parte da raíz do desejo da maternidade era ser verdadeiramente uma boa mãe, era quase ser mãe de mim mesma, ter o que não tive.

Ironicamente, esse caminho ficou-me vedado.

"Será suficiente? Será de menos? Seremos completas sem eles? Seremos mais felizes sem carregar o peso de outras vidas nos ombros?" - foram questões que me coloquei muitas vezes. Dizer que este longing desapareceu completamente seria mentir. É uma ferida que aceitei que a espaços vai sangrar, mas eu prometi a mim mesma que ia viver a minha vida, para além desse processo de luto do que não pude ter.
No entanto, regularmente as pessoas ficam ofendidas porque eu não quero nem nunca quis adoptar. Parecem achar que seria uma obrigação para mim e outr@s na minha condição ter que automaticamente adoptar. As questões são geralmente as mesmas. Não sou capaz de amar uma criança que não é minha biologicamente? Sim, sou. Mas o que as pessoas não sabem e algumas esquecem é que a minha vida emocional foi sempre bastante complexa e eu sei que um processo de adopção é tudo menos simples. Tanto de um ponto de vista legal como tudo o que implica. E eu não quero viver uma situação que tem todos os componentes para ser trágica. Acredito que muitos processos de adopção decorram maravilhosamente, mas eu já tive a minha dose de drama.

Não quero viver esse processo. Não acho que seja egoísta da minha parte, como algumas pessoas parecem pensar. Não devo nada à sociedade. A sociedade deu-nos o quê? Um mercado de trabalho saturado e precário, um sistema que penaliza fortemente quem não tem uma estrutura de apoio (como avós) que possam ficar com as crianças fora da hora 09h/18h ou quando estão doentes ou no Verão quando os colégios fecham.

Tal como a fs2, as pessoas que me são próximas e tiveram filhos não têm vidas que eu trocasse pela minha. As pessoas estão hoje em situações tão ou mais dependentes do que nos anos 90. A época da abundância acabou há pelo menos 2 décadas. Por muito triste que seja dizer isto, há casais juntos sobretudo pelas crianças, porque sozinhos não suportam as despesas. Há pessoas a lidar com problemas que têm a raíz na escassez de recursos e afins. Muitos casais ainda estão longe de dividir tarefas equalitariamente, muitos trabalhos exigem um nível de entrega que retira a energia de qualquer um, deixando muito pouco ou nada para a família. Certamente que existirão casais muito felizes com filhos, eu simplesmente não conheço nenhum.

Com o tempo aprendi a canalizar as facetas da minha personalidade que ficaram arrumadas para outro tipo de ligações. Há uns meses, alguém me disse "mas não são filhos". Claro que não são, nem eu disse que são. Disse simplesmente que foram formas que encontrei de coping com uma situação que não foi criada por mim, nem posso solucionar.

Não creio que seja de menos, fazemos o que podemos com a mão que a vida nos serviu. Mas acredito que alguns nem concebam uma vida que não segue o expectável ou que se desvia do curso que parecia seguir.

Existem dias em que eu própria assumo que, nesta fase, há desafios que eu prefiro não ter que lidar com. Ou que dificilmente teria energia ou disponibilidade mental. Talvez há 15 anos atrás. Mas não agora.

"A minha maior bênção foi ter aceite aquilo que tenho, aprender a valoriza-lo, e não viver sempre na angústia de ter aquilo que nunca poderei ter." Por caminhos diferentes e pontos de partida distintos, julgo que chegámos ambas à mesma resolução.

Não teria sido a minha escolha, mas existem vantagens e desvantagens como em tudo na vida. Focarmo-nos apenas no que não temos, não nos adiantaria de nada e só nos tornaria miseráveis.

O ano começou agora, eu diria que de forma diferente do que os anteriores.

0 comentários:

 

a perca © 2008. Chaotic Soul :: Converted by Randomness