Li as tuas palavras e pensei, por momentos, que o que escreveste poderia ser o meu próprio discurso. Em tempos falaste também sobre as relações sociais e a sua complexidade. Deixo aqui o meu contributo em relação ao tema, desta feita sem recorrer aos senhores omniscientes da nossa área.
Muito daquilo que fui já o sistematizei quando falei da desindividuação. Quando era mais nova era sensivelmente como tu. Aprendi correctamente a lição, era profundamente criteriosa. Julgava ter o dom da palavra. Julgava ter a argúcia de raciocínio. Julgava ter uma infinidade de coisas que não reconhecia na maioria das pessoas, e isso bastava-me. Dizia que as pessoas tinham de gostar de mim pelo que eu era e que, eventualmente, as que valiam a pena ficavam, as que não valiam partiam. Por outras palavras, as fúteis acabariam por procurar alternativas, as diferentes teriam alguma curiosidade em estabelecer uma relação social.
Durante algum tempo esta premissa fez-me sentido. Em parte, ainda hoje lhe consigo reconhecer alguma verosimilhança. No entanto, a minha posição era profundamente distante e passiva. Não lutava pelas pessoas, esperava que elas se identificassem com alguma coisa e lutassem por mim.Com o passar dos anos, claramente inadaptada ao conceito da superficialidade, optei por criar relações intensas com meia dúzia de pessoas. Criei várias relações dessas, sendo que a maioria se perdeu, umas por uns motivos, outras por outros. Sempre exigi muito dos outros, talvez porque tenha consciência daquilo que exigo a mim própria e do que tenho capacidade para oferecer. Neste sentido, cada decepção ou desilusão era-me inflingida uma e uma só vez. Daqui decorreram vários danos colaterais, como é óbvio. Com o tempo percebi que a minha inflexibilidade magoava as pessoas. Com o tempo percebi que magoar os outros tinha uma interferência atroz no meu equilíbrio homeostático.
É claro que a minha perspectiva histórica explicaria, porventura, alguns episódios que se passaram. Considero-me uma construção social de grande complexidade. Levei anos a transformar-me naquilo que sou hoje. Quando era mais nova era excessivamente boa. Entretanto aprendi habilmente a defender-me. Criei um conjunto de mecanismos de defesa que me permitiram gerar um distanciamento face aos outros completamente assustador. O que eu ainda não tinha equacionado era que, no limite da indiferença, não existe nada. Permanecer no limbo e assumir uma perspectiva de vida estóica é efectivamente muito lírico, mas profundamente erróneo e vazio. Sou uma pessoa intensa, não sei viver no limiar do morno. Não sei viver no limiar da vida. O mais difícil de vencer é, ainda hoje, encontrar um meio termo entre os momentos em que devo avançar e aqueles em que devo recuar, e esta situação gera-me dissonância suficiente para que permaneça inoperante na maioria dos casos.
Nunca arrisquei em nada. Sempre fiz as apostas que considerei seguras, as que já estariam ganhas à partida. Como seria expectável, foi precisamente daí que recebi as maiores derrotas. Mas fiz pequenas aprendizagens, nomeadamente a saber retirar o que há de positivo em cada situação, por mais miserável que seja. Recuperei uma pequena parte da minha sensibilidade, o que já foi muito bom, mas raramente tenho capacidade de a mostrar. A ideia de ficar vulnerável aflige-me. A ideia de ser manipulada e subjugada incomoda-me. Disseram-me em tempos que tinha dificuldade em me expressar emocionalmente. Fiquei piursa obviamente, não por terem sido injustos, mas por estarem cobertos de razão. Nem sempre consigo domar o monstro social em que me tornei e isso entristece-me. No entanto, preciso de pessoas sensíveis em meu redor, talvez porque acredito que, um dia, esta catarse venha a ter efeitos positivos. Talvez porque elas me consigam ceder alguma da ternura que recalquei em mim e que, algures no tempo, se perdeu. Em suma, penso que não sei lidar com a sensibilidade, ponto final. Isto afecta as minhas relações sociais em grande medida, porque desconheço a noção de meio termo. Ou dou tudo, ou não dou nada, e são poucas as pessoas que merecem alguma coisa de mim.
Passei pela faculdade da mesma forma que tu. Criei e destrui laços. Seriam realmente importantes? Penso que aquilo que é relevante na nossa vida acaba por ficar. As relações que são realmente fortes não se abalam com meia dúzia de vicissitudes, e aqui falo por experiência própria. Neste ponto, faço mesmo uma atribuição externa: tivemos azar, muito.
Continuo a acreditar no destino inexorável e noutras assunções similares. Há pessoas que entram na nossa vida que são efectivamente especiais. Cabe-nos apenas reconhecê-las, com base nos nossos critérios. Se há coisa da qual me orgulho é de ser uma boa avaliadora da espécie humana e, nessa medida, tenho de assumir que se deixei partir alguém foi por que, em certa medida, essa pessoa me falhou de alguma forma.
Despeço-me, concluíndo este desabafo com um corolário que assumo para mim: existem pessoas que são efectivamente um mundo para nós. São poucas as que posso colocar neste grupo, mas tive o privilégio de conhecer algumas. São as que nos oferecem um olhar ternurento e um sorriso condescendente, em qualquer situação. São as que nos fazem sentir seguras e meninas outra vez. E é nesse espaço que me restabeleço e recupero aquilo que a vida, ao longo do tempo, corrompeu em mim.
"Há uma criança em ti que te acompanha sempre. Mantém-na em disciplina para não cometer disparates. Mas não te envergonhes muito dela, atende-a de vez em quando. Porque quando ela te não acompanhar, só já te resta morrer." - V. Ferreira
quinta-feira, 8 de janeiro de 2009
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2 comentários:
"Há uma criança em ti que te acompanha sempre. Mantém-na em disciplina para não cometer disparates. Mas não te envergonhes muito dela, atende-a de vez em quando. Porque quando ela te não acompanhar, só já te resta morrer." - não consigo ganhar palavras para dizer mais que isto.
Verguemo-nos às verdades que Ferreira já antevia antes de nós.
Noutros tempos, a nossa sensibilidade já existia. Em Pessoa. Em Ferreira. Em Lobo Antunes.
Noutros corpos. Noutras almas. Noutras dimensões.
Precisamente FS1... Eu por agora sou apenas uma maquinação do intelecto. E penso que já não seja nada mau. Mais grave, temos tendência, como diriam os nossos coleguinhas, para a psicologização. Não faz mal. Gosto de ser insultada com neologismos eruditos.
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