quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A Partilha da PERCA

Ultimamente tenho reflectido sobre um tema que me parece estar em voga, pelo menos para os provectos oradores com os quais me deparo semanalmente a par com a FS1 que, como se sabe, possui o dom da ubiquidade. Os nossos “jubilados”, que entendem tudo de coisa nenhuma, deliberaram que o conceito de partilha era de todo o interesse.

Obviamente que a minha pessoa, no seu já habitual e inopinado estado entrópico, ofereceu prontamente o sorrisinho escarninho que esta deliberação parecia merecer.
Entretanto, e quando tive a humildade suficiente para reflectir sobre o assunto, reconheci-lhe alguma verosimilhança que ignorei numa primeira instância. Recordei-me, então, de que em tempos tinha aprendido alguma coisa sobre isso. Vou tomar a liberdade de partilhar com vocês, insistindo na minha nova e auspiciosa faceta de pedagoga.

Rimé dedicou-se à investigação duma temática particularmente curiosa - a partilha social de emoções -, segundo a qual as pessoas, quando expostas a situações traumáticas, tendem a falar sobre as suas experiências, relatando os seus sentimentos em ambiente social. Duma forma lata, a partilha social de emoções ocorre no decurso das conversas, nas quais as pessoas comunicam abertamente sobre as circunstâncias emocionais e os seus sentimentos e reacções. Advoga Rimé que este fenómeno pode desempenhar um papel preponderante no processamento de informação emocional e, neste sentido, na resolução do impacto emocional associado a um evento emocional ou stressante. O autor avança com cinco argumentos em prol desta visão, a saber:

1) As emoções podem elicitar sensações ambíguas e, neste sentido, as pessoas tendem a clarificá-las e resolve-las ao partilhá-las com elementos do seu ambiente social.
2) As emoções são experiências densas e difusas que necessitam de articulação cognitiva; através da linguagem e falando com os outros, as pessoas podem organizar o material emocional, distanciando-se do evento emocional.
3) As emoções geralmente desafiam as crenças das pessoas sobre si próprias, dos outros e do mundo, sendo que a partilha emocional permite aos indivíduos a restauração destes elementos, assim como a busca de um sentido aceitável para o evento.
4) Quando as crenças são desafiadas, o sentimento básico da segurança é ameaçado, pelo que as pessoas tendem a procurar apoio social. Nesta perspectiva, a partilha da emoção com membros significativos do seu ambiente social permite aos indivíduos encontrarem um apoio externo para o seu trabalho emocional.
5) As emoções podem elicitar a atenção auto-focada, podendo dissociar o indivíduo do ambiente social. Através da partilha de emoções, o ambiente social pode aceitar e compreender um estado que foi experienciado em privado, propondo formas sociais aceitáveis de definir essa experiência.

Depois desta pequena prelecção de PS, resta-me escalpelizar um pouco sobre ela, enquadrando-a na nossa experiência de vida.

Primeiro, acho que as FS’S funcionam, efectivamente, por choque traumático e, neste sentido, temos uma necessidade idiossincrática de experienciar qualquer coisa adversa para conseguir garantir os recursos cognitivos e emocionais necessários para empreender numa determinada acção. Penso que em certos momentos da nossa vida ficamos votadas ao marasmo e à inércia, e só perante situações de horror genuíno conseguimos gerar uma resposta com praticabilidade.

Segundo, ficamos emergidas nos nossos problemas com uma facilidade extrema, e tendemos a reflectir sobre eles até roçarmos o limite do irracional. É precisamente aqui que entra a partilha, quando procuramos alguém que nos ajude a criar um sentido onde não encontramos nenhum.

Terceiro, e porque um bocadinho de sentimentalismo também me assenta bem de quando em vez, o ambiente social também será alvo da minha análise. E porque vocês fazem parte dele, estas últimas ideias são uma singela oferta da minha pessoa às FS’S.

Em quantos ambientes sociais nos entregamos, desvelamos a nossa realidade oblíqua e desconexa, contamos as nossas experiências, revelamos os nossos sentimentos e ideais? A quantos pertencemos efectivamente? Que importância real lhes atribuímos? Em quantos deles conseguimos um rácio simpático entre o que damos e o que recebemos?
Aqueles que nos escutam nem sempre têm a capacidade de pegar no nosso discurso dilacerado e torná-lo, novamente, num todo coerente e simbólico. Creio que existe uma assimetria gritante entre a nossa necessidade de partilha e a necessidade que os outros têm de nos escutar. Talvez por este motivo uma boa parte comece por dizer umas coisas e acabe a dizer ponta de coisa nenhuma. Paralelamente, nós vamos iniciar e findar a nossa partilha com a sensação angustiante que não pertencemos aquele ambiente social, agudizando a nossa necessidade, por si só ingente, de revelar coisas de toda a espécie.

Nesta linha de raciocínio, deixo-vos umas palavras finais: obrigada por me permitirem esta partilha e fazerem-me sentir, todos os dias, que o meu lugar é aqui, restabelecendo a unidade e a coerência no meu mundo; por saberem escutar, por saberem colher os fragmentos do meu ser, tornando-o o todo que, muitas vezes, eu insisto em dilacerar; por me dizerem, na maioria das vezes, o que preciso de ouvir e nem tanto aquilo que eu gostaria de ouvir.
Mais do que tudo isto, agradeço-vos fundamentalmente por me dizerem quase sempre aquilo que eu digo também, dando sentido à minha individualidade, muitas vezes abalada pelas personalidades heterogéneas que perpassam a minha existência. Por me fazerem sentir que uma parte infinitesimal do meu ser habita em vocês, e que uma parte de vocês habita também em mim. Por termos o nosso inconsciente colectivo, onde permanecem as ideias que, pertencendo a cada uma de nós são, ainda assim, comuns a todas.

Hoje, a PERCA deixa a sua deliberação sobre a partilha: há pessoas que existem para nos lembrar que há outros como nós, que assumir a diferença é o caminho, que banir a vulgaridade é a solução, que ainda vale a pena viver acima do limiar da mediocridade. E se a partilha só faz sentido no contexto social, devemos criar o nosso ambiente à imagem daquilo que somos, de forma a podemos reencontrar nele aquilo que pontualmente se perde em nós.

"Porque nada nos aproxima tanto da própria morte como a morte dos outros. E o vazio que deixam é irrespirável como todo o vazio. Não morras, existe. Para continuar a haver razão em eu existir." - V. Ferreira

3 comentários:

fs1 disse...

fs2 eu própria não o teria dito melhor.
reencontrarmo-nos em alguém é a forma de fugirmos da loucura do dia a dia de não nos vermos em nenhum outro rosto ou nenhumas outras mãos.

fs3 disse...

Minha cara FS, eles não sabem nem entendem aquilo que nós temos...

A nossa partilha está selada com a estampa da imortalidade e intemporalidade, porque na longitude está a nossa aliança...

Rimé era dos nossos, talvez tivesse a sorte de ter alguém que lhe desse o sentido que me dás sempre que chamo por ti...

Porque ainda encontro em ti o eco das minhas palavras, porque ainda me respondes com o silêncio que impera, porque ainda me falas quando não quero ouvir, porque a minha existência reflecte a tua, porque dás sentido aos meus actos irreflectidos, porque me entendes... e por mais um milhão de razões inomináveis que fazem das tuas palavras a sombra dos meus pensamentos...

Porque o choque traumático só é positivo e porque só ando para a frente porque existes em mim.

fs2 disse...

Para as duas FS'S, mais uma do indefectível Vergílio Ferreira:

"Porque todas as palavras eram grosseiras e vãs. Depois de se dizerem não ficava mais nada para se dizer. E há coisas que nunca se podem dizer de todo."

 

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